domingo, 11 de janeiro de 2015

Tatarstão, centro do islã na Rússia

Kazan, capital do Tatarstão, uma das sedes da Copa 2018. Ao fundo o rio Volga congelado.


Recentemente a Europa Ocidental foi abalada por um atentado em Paris. Embora nada justifique a barbaridade do crime, um dos lados criou as condições para tal, apresentando da pior e mais ofensiva maneira possível uma religião que faz parte da história, da cultura e das tradições de um povo há mais de mil anos. Na Europa Oriental, precisamente na Rússia, é diferente o tratamento dado a uma religião minoritária, o islã.

Em minha viagem à Rússia me senti estrangeiro em apenas um lugar, a República do Tatarstão. A Federação Russa é uma federação sui generis, nela há diversas repúblicas que gozam de autonomia superior a dos estados no Brasil ou nos EUA, por exemplo. O Tatarstão nada tem a ver com a "Tartária" por vezes retratada em filmes americanos, Tartária é o antigo nome para a Sibéria. O Tatarstão é, conforme seu nome sugere, o "País dos tártaros", um povo muito antigo com costumes e tradições próprias que faz parte da Rússia, fez parte da Horda mongol e há centenas de anos adotou o islã como a sua religião. Por muitos anos os tártaros oprimiram e escravizaram os russos, todavia isso mudou a partir partir da Batalha de Kulikovo, nos campos da cidade de Tula. Lá, Dmitriy Pojarskiy e Kuzma Minin formaram um exército popular que desafiou a autoridade dos tártaros. Ivan, o Terrível, completou o processo de libertação da Rússia com a invasão da cidade de Kazan. Para comemorar sua vitória sobre os tártaros, ele ordenou a construção da Catedral de São Basílio, que está na Praça Vermelha, e deu início a um processo de russificação de Kazan.

Hoje, no Tatarstão, cerca de 48% da população é composta pelso tártaros, os russos representam cerca de 43%, sendo minoria, os chuváquios e outras nacionalidades compõem o percentual restante. Os tártaros são diferentes dos russos fisicamente. Embora haja diferentes tártaros, por se tratar de um povo túrquico com raízes asiáticas, muitos tártaros seriam facilmente confundidos com alguém do Nordeste do Brasil, em especial do Ceará (composto em sua maioria por pessoas de descendência indígena). Alguém que vá a uma estação de trem em Kazan pode ter a ligeira impressão de que está numa rodoviária em Fortaleza (para a minha surpresa ao meu lado sentou-se até um negão, egípcio que morava na Rússia com sua esposa tártara, conforme me contou). Recordo-me quando em um trolebus conheci uma jovem tártara, ela se propôs a me ajudar a encontrar o endereço de uma amiga que estava doente. Sua aparência era totalmente incomum, possuía pele escura como uma brasileira nordestina, olhos puxados e cabelos completamente negros. Após encontrar minha amiga russa convidei a minha nova amiga tártara para sair conosco para uma pizzaria próxima, então após presentear minha amiga russa com uma miniatura da Estátua de Iracema, eu a disse que ela se parecia com Iracema, heroína do romance do escritor cearense José de Alencar. Para minha surpresa, ao contrário de muitos tártaros ela era ortodoxa, disse que seu apelido era "Mulatka" (mulata). 

 Matrioshka russa (esquerda) e matryoshka tártara (direita)

Todavia nem todos os tártaros étnicos tem a tez escura e olhos puxados. Logo em minha chegada em Kazan, tomei um taxi e vi uma bela igreja. Quando perguntei ao motorista qual o nome da Igreja, cuja cúpula refletia os raios solares, ele disse que não sabia, pois era tártaro, muçulmano. Quando eu lhe disse que ele parecia um russo, ele disse que há diferentes tártaros e muito tem olhos e tez clara, mas eles podiam ser diferentes, citando os tártaros de Kazan e os Tártaros da Crimeia como exemplo disso. Durante a época da II Guerra, era comum os alemães e italianos veicularem vídeos para as suas tropas onde mostravam prisioneiros tártaros e outros povos asiáticos como "prova de que os russos não eram europeus", numa tentativa de desumanizar o oponente exibindo as "Hordas tártaras que queriam dominar a Europa", o "novo império de Genghis Khan". Independente de aparência física, vale lembrar que na Rússia a constituição garante a etnia com base no critério de autodeclaração.

 A cantora pop tártara Alsu e o rapper tártaro-judeu Timati. Em seus passaportes são identificados apenas como "russos".

Um símbolo do Tatarstão é o Kremlin de Kazan, e por que não dizer, o próprio idioma tártaro, que é comumente utilizado na comunicação entre os tártaros em restaurantes, locais públicos, dentre outros. A estação de trem de Kazan emite informes de voz em russo, tártaro e inglês (em Moscou eles são dados apenas em russo). É comum andar por Kazan e ver placas com inscrições em tártaro e em alguns casos até em árabe, assim como encontrar em locais públicos exemplares não só da Bíblia, como do Alcorão. Em Kazan está a Mesquita de Kul Sharif, uma das maiores do mundo, situada no interior do Kremlin de Kazan, que também abriga um museu, uma loja de suvenir e possui uma zona de tiro onde se pode atirar com uma besta. Também é um ótimo lugar para recarregar o seu celular sem ter que pagar por uma tomada (sim, em Kazan quase sempre as tomadas são pagas!). Eventualmente, no Kremlin de Kazan, há encontros públicos de tango, que tem ganho um grande número de adeptos na cidade, russos e tártaros. A república é tida como um lugar de tolerância religiosa, fato expresso na presença de uma igreja convivendo com a mesquita no Kremlin Kazan, bem como no Templo de Todas as Religiões, onde encontra-se em um lugar um local de culto para cristãos, muçulmanos e judeus, em Kazan.

Templo de todas as religiões, durante o amanhecer, em Kazan.
Idependente da imagem passada pelos tártaros sobre seu país, há aspectos negativos que podem trazer bastante desconforto ao estrangeiro, que é a forma como os tártaros se relacionam com os outros povos, inclusive os russos. Uma amiga de Tula contou-me que foi melhor tratada em Lvov, fortaleza da russofobia na Ucrânia (onde é possível encontrar até pôsteres de propaganda da Waffen SS Galizen em locais públicos), do que em Kazan, onde é fácil se deparar com taxistas espertos, insistentes e pessoas intrometidas que procuram dizer ao indivíduo tudo o que ele deve fazer num determinado ambiente.

Se você for ao Tatarstão, uma das cidades-sede da Copa de 2018 e atual sede dos jogos conhecidos como "Universíadas", lembre-se das palavras do imortal escritor Lyev Tolstoy, "existe duas Rússias, a Rússia europeia e a Rússia das florestas, do fanatismo, dos tártaros". Atual ou não essa citação, é interessante lembrar que ir ao Tatarstão é "visitar uma outra Rússia", que muito pouco tem a ver com aquela com a qual estamos acostumados, é tomar contato com uma cultura que pouco tem a ver com a do homem ocidental ou mesmo russo, mas também uma Rússia onde não há guerras e nem terrorismo.

Meu retrato com a mesquita de Kul'Sharif, no Kremlin de Kazan.
Vista exterior do Kremlin de Kazan.

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