domingo, 5 de abril de 2015

Há mais de 700 anos!

Foto de um manuscrito sagrado retratando a Batalha do Gelo, sob a liderança de Alexandr Nevsky


Visitar a Rússia é sem dúvidas uma experiência sensacional. Uma visita à Rússia não é só observar várias paisagens, prédios ou monumentos exóticos para tirar uma foto, é muito mais que isso. 

A sensação que alguém sente na Rússia é uma enorme sensação de poder, de estar em uma potência milenar e se sentir parte dela de algum modo, a sensação de que nada, mas nada mesmo, está em falta, e em razão da energia dos ancestrais russos, eslavos, variegues, não se pode sentir falta mesmo da luz do sol! E isso afirmo ativando o meu modo de pensar russo escrevendo em português. Digo isso por que o sol, na língua russa, tem um sentido profundo, sublime. É comum um russo dizer para sua namorada ou uma russa ao seu namorado "meu sol" (solntse maiô), assim escrevem também os poetas. O hino da União Soviética falava no "sol da liberdade", não um sol "físico" que brilha, mas um sol ideológico, cheio de significado. Isso é necessário para que o leitor compreenda o sentimento que me levou a me expressar por meio deste artigo.

Há mais de 700 anos atrás a Rússia (naquela época conhecida por "Rus", e não "Rossiya", nome grego adotado por Pedro, o Grande) conheceu um momento decisivo para sua sobrevivência. Os cruzados moviam uma guerra não apenas contra o Islã, no Oriente Médio, mas também contra os povos eslavos e cristãos da Europa Oriental em sua cruzada conhecida como "Drang nach Osten". "Nach" é uma palavra que aprendi essa semana em minha aula de alemão, "para", assim, "A marcha para o Leste", para a Rússia... Embora os cruzados da Ordem Teutônica tenham tido êxito em converter à força os povos da Europa Oriental, um povo não aceitou seu domínio nem a sua doutrina católica, esse povo era conhecido como "russo". E na época seu território ia de territórios ao oeste de Kiev até o seu limite nordeste, em São Petersburgo, era conhecida apenas por "Rus". A "Rus" não era um "império multinacional" na época, nem mesmo uma unidade política, mas uma terra onde vivia um mesmo povo e conviviam harmonicamente vários principados, várias cidades Estados, como a maioria dos reinos medievais. Ao leste estavam os tártaros e mongóis da Horda, um grande império multinacional que reunia tártaros, mongóis, chineses, escravos russos e povos asiáticos. Ao oeste estavam os poloneses e os alemães. Mas quase sempre a Polônia servia de passagem para os alemães e ao longo da história para quem mais quisesse ir até a Rússia.

Kiev havia caído e reinava na "Rus" a cidade-estado da Grande Novgorod, cidade mencionada pelas sagas variegues (vikings) como Holmgarde (Fortaleza da Ilha). Era uma cidade muito rica, cheia de ricos comerciantes, nem mesmo era um reino, mas uma república, como Roma no princípio. Embora seu antigo príncipe, Alexander Yaroslavich, tenha derrotado os suecos nas margens do rio Neva, os comerciantes tentaram assassinar o herói de apenas 19 anos, que teve que fugir da cidade. Isso mudou quando os Cavaleiros Teutônicos invadiram as terras russas, chegando a queimar a cidade de Pskov e ameaçando acabar com o que restava de "cultura russa" naqueles anos difíceis do século XIII, em 1242 em que os russos se viam dentre dois fogos, no ocidente os alemães e no oriente os mongóis. Todavia os mongóis eram pagãos e a eles interessava apenas o imposto pago pelo russo, ao passo que os alemães eram católicos e queriam não apenas o imposto do russo, como sua alma, sua fé!

Foto do Kremlin da Grande Novgorod, onde está situado o Monumento aos 1000 anos da Rússia

Com a ameaça dos cruzados, a população e um grupo de cavaleiros russos conseguiu reconduzir à cidade o príncipe deposto Alexander "Nevsky", isto é, "do Neva", a contragosto da nobreza. Ele foi eleito como o Príncipe da República de Novgorod. Sob sua liderança, toda a população local, incluindo os camponeses de cidades vizinhas, foram convidadas para formar uma "drujina", isto é, uma milícia, formada por camponeses e trabalhadores locais sem formação militar. Em russo é da palavra "drujína" que vem a palavra "drug" (lê-se druk, sem o som de "e" que brasileiros adoram incluir quando começam a aprender línguas como o inglês ou russo), isto é, "amigo". Assim, na Rússia a palavra "amigo" vem da palavra que designa um companheiro de batalha. Além disso foram reunidos cavaleiros da cidade, guerreiros profissionais para a grande batalha.

Alexander Nevsky era um gênio militar desde seus 19 anos e guerreiro exímio, ele logrou derrotar em duelo o jarl Birger (jarl era um cavaleiro de elite sueco), após a tentativa sueca de conquistar a Rússia pelo norte, onde centenas de anos depois seria fundada a cidade de São Petersburgo. Ele pôs fim à "Cruzada Sueca", em realidade uma raide viking disfarçada de cruzada cristã. Agora era hora de confrontar uma nova cruzada, a cruzada alemã! Os alemães dominavam na Idade Média técnicas avançadas de produção de armaduras, a chamada "Escola de Nurembergue". eles produziam armaduras pesadas, de malha rebitada e placa, elmos de placa que assustavam só pela sua aparência e também podiam resistir a mais impactos de corte e perfuração. Assim eles subjugaram vários povos ao longo do Báltico, tomaram cidades russas e queimaram como hereges a população ortodoxa que recusava se curvar ao catolicismo de Roma.

Clube de Reconstrução Histórica emulando fielmente os Cavaleiros Teutônicos

O príncipe Alexander então confrontou a Ordem dos Cavaleiros Teutônicos e a Ordem Livônica em solo estrangeiro, sobre o lago congelado Peipus, no que ficou conhecido como "A Batalha do Gelo", por esta ter sido em grande parte travada sobre o lago congelado. Após mais de duas horas e meia de combate corpo a corpo, Alexander Nevsky ordenou o avanço da cavalaria russa e dos arqueiros a cavalo mongóis inteiramente cheios de vigor. Os cavaleiros alemães recuaram em pânico para o interior do lago e foram dizimados ou aprisionados, tendo seus comandantes capturados. Assim, as "Cruzadas do Norte", decretados por bula papal com o pretexto de "as terras cristãs da Finlândia dos inimigos pagãos e ortodoxos", chegavam ao fim!

É interessante frisar que apesar da intensa participação alemã, havia também tropas do Reino da Dinamarca, exércitos papais e mercenários e recrutas estonianos. Assim, a batalha tinha seu fim em 1242. Mais tarde, 699 anos depois, a Alemanha iniciaria uma nova tentativa de conquista da Rússia, novamente sob a "bênção" do Papa, só que dessa vez sob o comando de Adolf Hitler, que mesmo ousou seguir a mesma rota dos Cavaleiros Teutônicos em direção à capital do norte, a cidade de Leningrado (São Petersburgo), onde A. Nevsky derrotara os cruzados suecos. Novamente eles contavam com o apoio de exércitos não-alemães, de toda a Europa, húngaros, tchecoeslovacos, suecos, noruegueses, franceses, italianos, turcos... mas novamente, eles fracassaram. Há mais de 700 anos atrás, no dia 5 de abril, Alexander Nevsky dizia não à tentativa de dominação da Rússia, disse ele que "aquele que vier a nós com a espada, pela espada perecerá". Ele foi canonizado pela Igreja Ortodoxa no século XVI, no século XX, nos tempos da União Soviética, seu feito foi retratado pelo grande cineasta Sergey Einsenstein no filme "Alexander Nevsky", feito nos anos 30 e considerado uma obra prima do cinema. No mesmo século, em 1941, o premier soviético I. V. Stalin evocou o nome de Alexander Nevsky como inspiração na luta contra o fascismo. No século XXI, em 2008, após um longo debate na TV, os russos escolheram Alexander Nevsky como "O nome da Rússia" (Stolypin ficou em segundo e Stalin em terceiro). Hoje na Rússia, especialmente em São Petersburgo, muitas ruas e locais públicos levam o nome do Príncipe de Novgorod. Em 1999, a cidade de Novgorod recebeu seu antigo nome "Grande Novgorod" (Velikiy Novgorod), que ironicamente hoje é menor do que a "Pequena Novgorod" (Nizhniy Novgorod), que também será sede da Copa de 2018.

Cena do filme "Aleksandr Nevsky", de Sergey Einstein, retratando o príncipe de Novgorod. O filme possui cenas inovadores na cinematografia e as cenas de batalha são consideradas muito bem produzidas e mesmo superiores a muitas de filmes atuais
Alguns blogs sobre a Rússia, publicados por néscios que estão apenas atrás de "novas fotos para o Instagram" menosprezam o feito do knyaz de Novogorod, sustentando que "na ortodoxia muitos príncipes viram santos", ignorando totalmente e descontextualizando a sua história. O feito de Alexander Nevsky representa uma tradição milenar de um povo, de resistir às invasões, de luta pela liberdade, tradição essa que permanece pelos séculos, de onde emana o poder que tem a Rússia. Que assim seja, no século dos séculos!


                A Catedral de Alexandr Nevsky, em Tula, com um busto ao Príncipe de Novgorod


Uma das canções que integram o filme Alexander Nevsky foi composta pelo grande compositor russo Sergey Prokofiev, "Erga-se, povo russo". A composição foi feita em homenagem aos 120 anos do nascimento do grande compositor russo.

REFRÃO:
Вставайте, люди русские, (Levante-se, povo russo)
На славный бой, на смертный бой. (Para o combate glorioso, para o combate mortal)
Вставайте, люди вольные, (Levante-se, povo livre)
За нашу землю честную! (Pela nossa terra honrada!)

Живым бойцам почёт и честь, (Aos combatentes vivos galhardia e honra)
А мёртвым - слава вечная. (E aos mortos - a eterna glória)
За отчий дом, за русский край (Pela pátria, pelo país russo)
Вставайте, люди русские! (Levante-se, povo russo!)

REFRÃO

На Руси родной, (Na querida Rússia*)
На Руси большой (Na grande Rússia*)
Не бывать врагу! (Não chegará o inimigo!)
Не бывать врагу!
Поднимайся, встань, (Erga-se, levante-se)
Мать родная, Русь! (Mãe querida, Rússia!*)
Поднимайся, встань, (Erga-se, levante-se)
Мать родная, Русь! (Mãe querida, Rússia!*)

Refrão

Врагам на Русь не хаживать, (Os inimigos na Rússia não passarão)
Полков на Русь не важивать! (Regimentos na Rússia não sobreviverão)
Путей на Русь не видывать, (Caminhos na Rússia não serão abertos)
Полей Руси не таптывать (Os campos da Rússia não serão pisados)

Refrão

*Aqui o termo usado é "Rus", o nome antigo da Rússia, e não "Rossiya" (nome atual), adotado a partir de Pedro, o Grande, no século XVII, adotado da língua grega.

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