segunda-feira, 13 de junho de 2016

A máquina do tempo secreta da Rússia


Um Lada em frente ao sítio de Bogoslovka, cujos donos pescavam e fritavam um churrasco


A Rússia possui uma máquina do tempo secreta, ela não utiliza energia elétrica, e nem mesmo tecnologia de ponta, ela existe há muitos anos no país e quando a utilizamos, não são necessários espalhafatosos efeitos especiais, essa máquina do tempo corresponde aos museus e monumentos arquitetônicos da Rússia, disponível para todos desde a Grande Revolução de Outubro!

Um desses locais nos leva de volta aos tempos da Rússia antiga, um sítio feito inteiramente com base na arquitetura da Rússia do passado, localizado a apenas 10 quilômetros de São Petersburgo, no Parque Etnográfico Russo conhecido como Bogoslovka (literalmente, "Teológico"). Lá podemos ver uma grande igreja de madeira, reconstruída no século XX, sem o uso de pregos, e uma pousada nos moldes das pousadas da Rússia antiga. Destacam-se na parte frontal da pousada símbolos usados pelos russos medievais em suas casas, a suástica, que até os anos 20 do século XX era usada frequentemente na Rússia, depois caindo em desuso com a ascensão do nazismo na Alemanha na mesma época. Ressalte-se, que a suástica jamais foi um símbolo político russo, aparecendo apenas em bordados de camisas e na fachada de casas.

O local é tão "secreto" que é desconhecido até mesmo por petersburguenses natos, ao postar minhas fotos, muitos achavam que eu tivesse ido a Fiji, na Karelya, ou a algum outro local da Rússia, sequer imaginavam que eu ainda me encontrava nas cercanias de São Petersburgo, na Região de Leningrado.

Bogoslovka é uma ótima pedida para quem viu palácios demais em São Petersburgo e busca uma vista alternativa, busca explorar a civilização russa!


"No mundo há muitos países diferentes, mas eles não podem entender a Rússia com a mente, como você sofreria com as feridas e estaria pronta para suportar cada uma delas", nos dias uma canção russa. Na foto, vemos um pequeno memorial dedicado aos marinheiros que defenderam o rio logo ao lado dos ataques da Marinha da Alemanha Nazista, impedindo que o III Reich furasse a resistência russa durante o Bloqueio de Leningrado.





Seguindo adiante, nos deparamos com uma pequena trilha pela floresta, e então evoco um famoso poema russo que conheci no filme "Brat 2", acompanhado por uma russa que organizou o evento:

"Eu sei que eu tenho uma grande família,
E também trilhas, e bosques, no campo cada trigueiro,
Um céu azul, isso é tudo meu, precioso,
Essa é a minha pátria, e amo a todos no mundo!"

No grupo estavam jovens indianos e um americano, além de russos. A minha grande preocupação era se o tempo iria abrir de vez ou continuar fechado para garantir boas fotos.  


Em meio ao caminho eu buscava a árvore russa conhecida como "íva", em português conhecida como "chorão". Nunca fui "botânico" ou fã de plantas, mas essa árvore tem um significado especial para mim, já que fazia parte dos primeiros capítulos do meu manual de russo, da época soviética, o último manual russo-português publicado até 1963. A partir de 64, não apenas se tornou proibido publicar esse tipo de material, considerado "subversivo", como muito perigoso! Repressão ao idioma russo, um filme conhecido, velho e torpe, que hoje se repete na Ucrânia, mas que há quase 60 dávamos o pontapé inicial. Ao nos deparar com o local, víamos a placa que anunciava o complexo arquitetônico relativo à arquitetura russa dos séculos XVII e XIX.




 

Cercado por um muro de madeira, vemos um tempo ortodoxo com um conjunto de 25 templos internos, número bíblico. Conforme já publicamos em outro artigo, um templo ortodoxo pode ter desde 1 cúpula até 33, número que representa a idade com a qual Cristo foi crucificado. O formato de bulbo (cebola) assemelha-se ao formato de uma vela, em referência à citação bíblica "Eu sou a luz do mundo".

A Igreja Ortodoxa Russa foi um fator de preservação da cultura e da identidade russa, a sua mentalidade, distinta da católica ou protestante, foi um fator que moldou a idiossincrasia do russo. Recordo-me como em Moscou fui hospedado por um amigo, que mesmo casado cedeu a sua cama de casado, mesmo com a minha insistência em dormir no chão em um colchão, como já havia feito. Na pior das hipóteses, sempre teria o meu capote francês azul para me abrigar e não sentir frio. Ainda assim, ele cedeu a sua cama. Mesmo sendo ateu, ele dizia que apenas seguia a tradição de seus pais. Outro dia, antes da minha confissão, lia um livrinho que me foi dado de presente em minha primeira confissão, em Tula, por uma idosa ortodoxa, lá estava escrito "bem aventurado é aquele que abriga o viajante em sua casa", e descrevia a importância desse ato. É certo que essa atitude não é exclusiva do russo, mas sem dúvidas é um legado deixado pelo cristianismo.

Mesmo se falarmos do regime soviético, um Estado laico, vale lembrar as palavras do filósofo alemão Carl Schmidt, de que "ideologia é religião secularizada". Stalin costumava dizer que "a vitória estará conosco", os russos pré-soviéticos diziam "Deus está conosco". Os russos entoavam orações por meio de hinos divinos, demonstrando a fé em seus valores, os soviéticos faziam o mesmo através de hinos seculares que até hoje são conhecidos pelo grande público e que expressavam a fé do povo na luta pela sua libertação, da vitória da vida sobre a morte, e por isso jornalistas como Konstantin Syomin, não por acaso, falam de grandes datas como o 9 de maio como a "Páscoa Vermelha", quando o país morreu em 1941, mas ressuscitou como uma superpotência. E deve ser enfatizado que na Rússia o 9 de maio convive harmonicamente com a páscoa (esse ano comemorada no dia 1º de maio), e que nas ruas ortodoxos e comunistas, e mesmo ortodoxos comunistas, comemoram a data. Mesmo em livrarias como a Bukvoyed podemos encontrar a bibliografias de padres condecorados com medalhas de guerra, ortodoxos que combateram na Grande Guerra Patriótica, rejeitando o discurso de que "todos eram ateus". A ortodoxia também foi fundamental na concepção de uma técnica de pintura russa, nascida há quase 800 anos pelas mãos do monge Andriey Rublyev.



Reparávamos em cada detalhe de uma arquitetura original e totalmente surpreendente, fora do padrão holandês de São Petersburgo, incluindo a suástica russa conhecida como kolovrat, que pode ser vista pendurada no pescoço de alguns jovens, uma forma de contra-cultura:





E para concluir o passeio, adentramos a catedral, nos deparando com o batismo de um garoto de 7 anos. Uma das nossas colegas de passeio, pagã, não hesitou em vestir o lenço sempre usado pelas mulheres no interior da igreja. Os homens já se encontravam com a cabeça descoberta mesmo antes da igreja, cabendo apenas adentrá-la e inspecionar sua arquitetura interna e os seus ícones.






Assim, concluíamos a nossa visita, contemplados pela saudação ortodoxa impressa na fachada da catedral, "ХВ ВВ", isto é, as iniciais de "Cristo Ressuscitou, Verdadeiramente Ressuscitou". A propósito, no russo, a palavra para "domingo" é "Voskressenye", isto é, "Ressurreição", deixando claro que para os russos o domingo não é o "dia do sol", mas assim como para os brasileiros é o dia do Senhor (Domenicus), precisamente, o dia da Ressurreição, o dia em que celebrei o meu retorno à Rússia, vindo da Finlândia, lugar e indumentária melhor para comemorá-lo não poderia haver!





Nota aos leitores: Se você pretende conhecer o sítio arqueológico "secreto" de Bogoslovka e tirar fotos usando roupas típicas, entre em contato conosco pelo e-mail: crtvbr@gmail.com e agende a sua seção de fotos!

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